quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

Memórias de um imigrante (09/04/2008)

Atualmente existem muitos imigrantes brasileiros, todos nós conhecemos algum ou outro parente ou amigo que mora ou morou no estrangeiro. Recentemente, os estrangeiros não estão sendo recebidos da mesma maneira que cinco ou dez anos atrás. O tema muito difundido ultimamente pela mídia é a deportação de brasileiros desde a Espanha, especificamente desde Madrid. Mas este não é um caso isolado, isto vem ocorrendo há dois ou três anos. A legislação está sendo mais rígida com os imigrantes ilegais, eles têm cada vez mais dificuldades para garantir sua instância.
O que aconteceu na Espanha e em Portugal alguns anos atrás foi o seguinte: sua produtividade aumentou de forma inesperada e acelerada. E assim, abriram suas fronteiras aos países latinos e africanos, para garantir uma mão de obra barata. O que vem acontecendo é algo previsível em um país que abriu suas fronteiras para ‘as oportunidades’, as taxas de desemprego aumentam. Os nativos não se sentem contentes eles sentem como se estes imigrantes ‘manchassem’ suas tradições e sua cultura. Claro que esta ideologia é praticada pela parte mais conservadora da população, embora a maioria sinta certo receio. Não é comparável a abertura das fronteiras coma a ação de encher um balão. Quando se enche um balão e percebemos que nele há suficiente ar, simplesmente o fechamos com um nó. Depois de abrir fronteiras não podemos ‘fazer um nó’ para deter a passagem de imigrantes. A relação entre os países com contato migratório cresce continuamente, por isso a detenção de imigrantes traz danos morais e/ou econômicos. Já que uma pessoa pode deixar uma vida para trás para morar no exterior, e tudo terminar com a famosa detenção no aeroporto.
A continuação há uma anedota de como são tratados os imigrantes na Espanha, dedicado a todos aqueles que pensam que Europa é o continente das oportunidades.
Era uma noite de terça-feira, naquele dia eu tinha ido dormir cedo, porque sabia que teria que acordar de madrugada e um longo dia me esperava.
- Thiago, acorda, vá se preparando. – Disse minha mãe acordando-me após ter acendido a luz do meu quarto. Fiquei num estado semi-consciente, típico de quando se acorda no meio da noite. Olhei para o meu relógio de pulso, e vi que eram três horas da madrugada. Levantei-me e me vesti. Quando cheguei à conzinha, ouvi a reclamação que já esperava:
- Meu filho, com essa roupa você vai passar frio. Coloque outra jaqueta e leve as luvas e as botas, choveu muito durante a noite. – disse impaciente minha mãe.
Sem dizer uma só palavra, voltei ao meu quarto e fiz o que fui mandado. Ao ir novamente à cozinha um chocolate quente, uma banana e um pedaço de pão com um ovo frito me esperavam. Meu padrasto também tomava o café da manhã, enquanto minha mãe organizava cuidadosamente uma pasta com documentos. Partimos rumo a Alicante, a cidade onde estava a secretaria de imigrantes. No caminho, dificilmente cochilava, já que Klaus, meu padrasto ligou o rádio para não dormir ao volante. A estrada estava tão vazia como uma praia em uma madrugada de inverno.
Após uma hora de viagem chegamos a Alicante, uma cidade movimentada e bem iluminada. O nosso objetivo era encontrar a secretaria de imigrantes. A impaciência do meu padrasto juntamente com a dificuldade minha mãe em interpretar mapas, tornou a tarefa ainda mais difícil.
Logo que entramos em uma rua menos iluminada que o habitual, uma cena me chamou a atenção e me tirou o sono por alguns instantes: mulheres nuas e seminuas, com decotes abertos e saias curtas. Elas corriam desesperadamente em direção ao nosso carro, gritando palavras incompreensíveis, que mais pareciam uma difusão de números diferentes.
- Olhem as galinhas, hahahaha. – Disse Klaus, zombando da situação, para quebrar a tensão que se originou com o olhar descarado. Em seguida acelerou o carro e saímos daquela rua escura.
A cena foi curta, mas despertou muito o meu interesse. Fiquei pensando como aquelas mulheres agüentavam aquele frio estando seminuas, e enquanto eu, dentro de um carro fechado e estando agasalhado, me debatia de tanto frio? E com que ânsia corriam como leões atrás de uma apreciada presa, competindo por ela. Algo muito importante chamou minha atenção: nenhuma parecia espanhola. Pude reconhecer mulheres latinas, africanas e do leste europeu. Com isso conclui e depois foi confirmada essa minha conclusão. A imensa maioria de mulheres que se prostituem na Espanha trabalha em condições péssimas, e são imigrantes. Muitas vezes são exploradas por uma máfia que cresce cada vez mais, nenhuma das que tive oportunidade de ouvir começou a exercer a prostituição voluntariamente.
(...) Continuamos rodando pela grande cidade uns vinte minutos mais, até que encontramos uma placa que sinalizava a direção à bendita secretaria de imigrantes. Foi um grande alivio encontrar o lugar, já que minha mãe chegou ao ponto de ameaçar em descer do carro e pegar um táxi, coisa que nada me agradava.
Descemos do carro, minha mãe e eu, e nos despedimos do meu padrasto. Ele nos desejou sorte e disse que não poderia vir buscar, já que tinha uma reunião naquele horário com os dirigentes da Volkswagen em Dénia.
- Que alívio!! - Falei com um longo e aliviado suspiro.
- Por que? – Perguntou minha mãe com uma certa indiferença.
- Agora acabaram as discussões sobre como chegar. Vocês dois poderiam ser mais pacientes e tolerantes um com o outro. – Desabafei, colocando para fora um sentimento que estava reprimindo desde o começo das discussões.
- Não se faça de vitima, você não contribuiu em nada para chegar aqui. Além disso, agora não é gora de discutir sobre isso. Vamos à fila. – Falou minha mãe sem perder a paciência.
Quatro e meia da manhã naquela fria cidade. Aproximadamente trinta pessoas na fila, nenhuma delas estampava um sorriso em suas faces. Todas estavam confusas, não tinham certeza de que seus objetivos seriam alcançados se seu tempo seria aproveitado. Tudo isso aliado a um lugar iluminado por faróis de carros, dava ao lugar um aspecto pouco acolhedor e desagradável.
A secretaria de imigração abriria suas portas às oito e meia da manhã. Não tínhamos chegado àquele lugar de madrugada por vontade própria. Os dirigentes da secretaria distribuíam uma certa quantidade de senhas. As pessoas que chegassem ao lugar após as senhas se esgotarem, teriam que voltar pelo mesmo lugar desde onde vieram. Se estas pessoas se reinvidicassem, pedindo um último atendimento, tentando convencer que seu assunto é rápido, o funcionário responderia de forma muito impessoal e indiferente, com a típica frase dirigida à pessoa que não tem êxito: ‘má sorte’.
Continuamos em pé, conversando algum assunto banal de vez em quando, até que descobrimos que o homem que estava na frente era brasileiro. Contou-nos sua história: Seu nome era Anderson, tinha 32 anos, trabalhava como garçom, era gaúcho e tinha vindo com o mesmo objetivo que eu, o famoso visto. Disse-nos que era formado em medicina, mas que seu currículo e seus estudos não foram considerados. O tempo passava, enquanto eu pensava na minha quente cama que poderia estar desfrutando. Pensava e deixava voar minha imaginação para que o tempo passasse mais rápido, já que parecia estancado.
Seis e meia da manhã eram quando o ambiente começou a clarear e progressivamente, o sol começava a emergir no horizonte. A fila já era enorme, não era possível observar o final dela, com isso, as confusões começavam, competindo por um lugar mais próximo à entrada da secretaria. Não era em vão que chegamos tão cedo, assim conseguimos estar longe do local das confusões, onde o homem se converte em um ser não civilizado.
Conforme o dia clareava, a temperatura aumentava, senti calor e tirei a grossa jaqueta. Oito e dez da manhã eram quando chegaram os funcionários, três mulheres, dois seguranças, e um homem alto, vestido socialmente. Ao passo dessas pessoas criava-se expectativa, da mesma maneira quando os jogadores de futebol entram no campo antes de um jogo importante. Nunca esqueceria a cara do homem alto, vestido socialmente, que parecia ser o líder daqueles simples funcionários. Expressava amargura, indiferença com os imigrantes, que não os olhava ao passar pelo seu lado, trato impessoal com seus subordinados. Com isso demonstrava que não gostava de seu trabalho, lhe parecia um peso que devia carregar, com isso difunde o pessimismo, e creia o mesmo sentimento com as pessoas que se relaciona. Os funcionários entraram pela porta pequena e a fecharam, deveriam estar preparando o lugar para receber os imigrantes. Cheirava-se nervosismo e expectativa, quando as pessoas começavam a falar entre si, a contar o porquê de sua vinda. Conseqüentemente meu coração começava a bater mais forte. Meia hora depois, foi quando os próprios seguranças começaram a abrir os portões daquela grande sala.
A fila começou a avançar, e pela primeira vez, comecei a olhar para as pessoas que a constituíam. Latinos, africanos e chineses. E aqui surge a pergunta: A Espanha é um país com mais imigrantes, onde encontramos alemães, norte-americanos, australianos, japoneses... Estas pessoas têm embaixadas de seus próprios países na Espanha, e são tratadas de maneira diferente, sem a complicação pela que ‘o resto’ tem que passar; a exceção dos europeus, que fazem parte da união européia e têm livre arbítrio para viajar por este continente. E principalmente, estes últimos referidos, europeus, norte-americanos, australianos e japoneses, são chamados de estrangeiros.
Ocorreu um incidente que chamou a atenção de todos, um homem de aparência marroquina ou algeriana gritava desesperadamente:
- Faz mais de um ano que ando atrás do documento sem resposta!! Eu quero trabalhar honestamente, mas vocês... - Não chegamos a escutar o que mais gritava, pois os dois seguranças, ambos com os bíceps do tamanho da minha cabeça, levaram para fora o homem.
Minha vez estava chegando e eu me sentia cada vez mais nervoso, vendo como o homem alto dispensava pessoas, beneficiadas ou não, como se fosse gado. Então chegou o momento pelo qual esperamos durante horas:
- Olhe senhor, meu filho estuda aqui há dois anos e lhe corresponde por lei o documento nacional, trouxe sua certidão de nascimento, documento de identificação, passaporte, comprovante da esc...
- Mas o passaporte é espanhol? – Me surpreendeu a forma brusca com que ele interrompeu minha mãe, que se sentiu indignada com o berro, mas manteve a calma e respondeu:
- Não, mas fui informada que com os doc...
- Vamos próximo!! – Exclamou o homem, que assinalava com a mão que saíssemos. Fomos falar com uma das funcionárias, que tinha a função de ‘psicóloga’ no lugar, pessoas com menos autoritarismo que aquele homem.
- Senhora, seu filho vai ter que receber o passaporte espanhol, para depois poder conseguir seu documento nacional, esta é a regra para os menores de idade. – Disse a moça, que parecia poder tratar-se com ela de uma forma mais humana.
Minha mãe que parecia alucinada com a sucessão de fatos que acabavam de acontecer. E ao mesmo tempo indignada por ter perdido tantas horas de espera com uma conversa incoerente e pobre, que não pôde nem sequer expressar-se como pessoa. Com essa cara permaneceu uns poucos segundos, até que quando pareceu ter recuperado a consciência perguntou:
- Então, meu filho é do Brasil, tenho que conseguir o passaporte no consulado de Barcelona?
- Sim, quando tenha o passaporte, volte aqui. E desculpe pelo trato, ele tem que atender muitas pessoas. – Disse a moça, ao ver a cara de desesperança da minha mãe.
Nesse momento fui entender aquele sistema: O homem alto terminava seu trabalho quando as senhas acabassem, e assim tratava as pessoas com a maior rapidez possível. Um sentimento de raiva, decepção e grande impotência se formou no meu interior, diante daquela situação indignante e de certa forma desumana. Olhei para minha mãe, percebi que o seu sentimento de ingratidão era ainda mais forte que o meu, mas o disfarçou o melhor possível.
Saímos da secretaria de imigração, descobrimos onde era a rodoviária a base de perguntas. Quando chegamos, fomos diretamente a um bar. Eu pedi um grande sanduíche, que meu estômago já começava a rugir como um leão, minha mãe pediu uma torrada com tomate e azeite.
- Ah! Eu vou visitar uma amiga agora, quer vir? – Perguntou minha mãe.
- Acho que não irei, estou cansado. – Disse eu, olhando para minha mãe com cara de aborrecimento.
- OK, então toma quinze euros, nove para a passagem e seis se precisar de alguma coisa. Vá com cuidado, tchau filho. – Com isso dito, ela foi pagar a conta e saiu do bar.
Saí do bar e comprei a passagem Alicante – Dénia. Era uma rodoviária limpa e bem cuidada, e era um lugar muito mais acolhedor que o inferno onde passei a madrugada e parte da manhã. Meu ônibus saia às 10:45, e eram 10:25, decidi sentar-me nos bancos que haviam na sala de ao lado. Estava soando o rádio, o canal local de notícias:
- Hoje, um indigente de origem árabe agrediu a autoridade pública, manifestando-se, quase agride fisicamente o secretário geral da imigração de Alicante e dois funcionários. – Noticiou o locutor do rádio.
E eu fiquei pensando: Indigente? Agressão? Pelo que vi e ouvi, nenhuma dessas condições se cumpria. O árabe queria trabalhar legalmente, e não teve nenhuma intenção de agredir fisicamente, simplesmente gritou e foi reprimido.
- Este árabe encontra-se em detenção provisória, até que algum familiar ou parente o reconheça, informamos: seu nome é Hasset...
Não queria continuar escutando, percebi que a mídia faz o que melhor lhe convêm: interpreta da maneira e com os termos que quer que sua população entenda os fatos.
Às 10:45, peguei o ônibus, olhei para o horizonte, e continuei vivendo aquela minha vida de imigrante ilegal.

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