domingo, 5 de setembro de 2010

O CRISTO REDENTOR LAMENTA. E CHORA.

Pão de açúcar. Sol. Turismo. Esse é o panorama do Rio de Janeiro na praia paradisíaca de Ipanema, Leblon e outros locais de encontro turístico. Atores, surfistas e gringos passeiam em lugares aonde uma água de coco chega a custar o mesmo que o salário semanal de um subempregado.
Um turista holandês e aventureiro conheceu as praias do litoral, mas pretende ver toda a cidade, e decide caminhar por sua própria conta. Caro amigo gringo, não o faça. Não o faça se ainda tens afeto pela tua vida. Não serás recebido nos morros da forma como o és nas praias, minto, tu não és recebido, teu cartão de crédito que é cobiçado. Evidentemente, não deverás visitar os barracos localizados a menos de meio quilômetro do glamouroso Rio de Janeiro. Glamour, sim, essa é a palavra indicada para a exuberante maquiagem que emana dessa cidade. Apenas maquiagem. O rosto do Rio mostra a miséria e a criminalidade, ocultos por trás do invejável e maravilhoso litoral.
Casebres se situam em morros com profunda declividade, sem assoreamento nem vegetação, colados uns nos outros, no intuito de ocupar o máximo espaço possível. Na década de 50 a instalação de favelas foi incentivada pelo prefeito, vista como “solução” e não como “problema”. E ali se instalaram multidões de pessoas.
Engenheiros e arquitetos há tempos que avisam do perigo desse estado. Nada foi feito. Enfim, as mortes anunciadas de García Márquez ocorreram. Durante os meses de março e abril uma chuva descomunal se alastrou pela cidade, houve deslizamento de terras, destruindo sem piedade os frágeis barracos.
A miséria e o desespero se espalharam como a epidemia da gripe aviária nas primeiras décadas do século XX. Perdas de imóveis, lojas alagadas, carros e motos destruídos; mas isso não é o pior, pois perdas materiais podem ser recuperadas com esforço e dedicação. A pior humilhação é a humana: mortes, falta de água potável, fome, estados de saúde degradantes, crianças desnutridas e traumatizadas, proliferação massiva de doenças. Feridas físicas são recuperadas, porém, essa humilhação psicológica permanece e não sara, da mesma forma que um prego deixa uma marca permanente na madeira. Traumas e más recordações não desaparecem jamais, instalando-se na mente dos mal-afortunados por toda a vida. Para cúmulo, o Estado demorou para atuar, como de costume.
As cifras astronômicas dos tesouros públicos permaneceram imutáveis durante essa catástrofe. Lya Luft comenta em uma de suas impactantes crônicas: “Qual é a real destinação das imensas cifras do impostômetro senão atender às urgências do seu povo?”. Em pleno setembro, falta pouco tempo para as eleições, e os candidatos a postos de poder na política não poupam em propaganda, autopromoção e canções diversas em carros de som. Interessante, eles agora estão presentes cada dia em uma cidade, com os gestos e palestras mais carismáticos, paparicando o povo, evento que se dá com a mesma freqüência do ano bissexto: a cada quatro anos. Porém, pouco se soube deles durante os acontecimentos que deram lugar à destruição de residências no Rio, e durante as chuvas intensas e destrutivas do Nordeste. Altruísmo tem que predominar para governar um país com abismos sociais, onde nós nos apoiamos na beira dos mesmos.


A lavadeira carrega um turbante na cabeça, veste panos rasgados e prendas de roupa, ela se dirige ao rio, para se encontrar com as outras lavadeiras. O rio, denominado Potengi, onde todas elas realizam a lavagem já está saturado de tantas lavagens; o leito do rio se converte em um cemitério fúnebre, e as bactérias passam a comandar as águas abandonadas. Após o serviço ser completado, a lavadeira volta para casa, limpa-a e atira as águas para as ruas do bairro da Ribeira. Um jumento que comia capim se assusta com a água suja que cai ao seu lado e relincha, se deslocando desorientado.
Dois meninos vestidos com bermudas e sem camiseta, imundos, entram correndo na casa, um deles com uma bola na mão. Os dois são recebidos com gritos pela mãe, reclamando com os rapazes por entrarem com os pés sujos.
- Que horas papai chega? – Perguntou o menor.
- Daqui a pouco ele chega... deve estar num engarrafamento na Bernardo Vieira.
As águas que a lavadeira e mãe de família atirou para as ruas públicas não são as únicas. Todas as mães o faziam, e o odor fétido invadia as moradias, as ruas se entupiam de lama e ratos e insetos se proliferavam com uma facilidade fora do comum. Tipicamente uma cena medieval, quando após os anos de ostracismo feudal as cidades voltavam a renascer ao redor dos rios. O senso de higiene era precário, o povo se vestia com panos velhos e manchados e os animais passeavam e defecavam onde mais lhes conviesse.
Um momento... Ribeira? Potengi? Engarrafamento na Bernardo Vieira? Esses lugares e fatos sequer existiam durante a Idade Média! Eles coexistem apenas na cidade de Natal do século XXI, a famosa época das telecomunicações e do capitalismo global. Porém, ainda existem pessoas cujas condições de vida remetem à idade média. As águas percorrem caminhos sinuosos e inundam as ruas, insetos vetores de doenças e ratos vivem livremente, vermes também se proliferam. Doenças aqui e aculá; e a ignorância a qual esse povo está submetido os impede de associar desnutrição, verminoses e febres à falta de higiene, e a peste negra endêmica, denominada nas regiões carentes de “surto de dengue” se alastra não só na microrregião, mas sim por toda a cidade. Vale lembrar que o mosquito transmissor não conhece a hierarquia urbana, o inseto não difere um burguês de um operário.
Um estado de calamidade é o que lhe espera ao próximo presidente, ao próximo governador e para outros senhores de gabinete, e espera-se que em 2010 mudanças possam ser promovidas. Não pense o caro leitor que um profundo sentimento de pessimismo me invade, contudo, este país, cuja economia foi considerada a oitava maior do mundo, ainda deve se homogeneizar de mais em relação à condição social. E a denúncia é a maneira que encontro para fugir da apatia e da indiferença. Enfim, no topo do pão de açúcar jaz o Cristo Redentor, observador dos lugares mais recônditos do Brasil, e ao perceber o estado em que está o país de dimensões continentais, lamenta a situação. E chora.

domingo, 9 de maio de 2010

DEDICATÓRIA AO DIA DAS MÃES

- Eu não pagarei escola particular para que meu filho seja reprovado, passe-o ou eu o tiro dessa escola! – Quem falava era a mãe de um rapaz de sete anos. Estava furiosa e falava de forma eloqüente. O menino foi reprovado em dez matérias, e a mãe não admitia que isso estivesse acontecendo em colégio privado. – Esses professores são muito incompetentes, não são capazes de ensinar ao meu filho o que ele precisa!
Asdrúbal então olhou para o solo, aparentemente reflexivo, colocou as mãos no bolso e tirou seu celular e levantou-o para que a mãe inflexível o visse.
- Minha senhora, eu gostaria que o conhecimento fosse como este celular e as cabeças humanas fossem baús. – Gorete, a mãe do garoto, olhou para o professor à sua frente perplexa e confusa, sem entender bem o que ele queria dizer. – Se assim fosse, abriria a cabeça do seu filho, introduziria o conhecimento e fecharia, da mesma forma como se guarda uma jóia, porém, infelizmente não é assim.
- Olha aqui... garoto, eu não sei do que você está falando, mas eu passo o dia inteiro trabalhando para pagar uma escola boa pro meu filho, então eu quero a aprovação dele. – Disse a mulher, um pouco menos alterada.
Asdrúbal era um professor jovem, mas se preocupava muito com o rendimento e com a educação de seus alunos. Ao olhar um professor tão jovem lecionando, e carregando a responsabilidade de educar o seu filho, Gorete o olhava com receio, mas não se atrevia a tachá-lo de inexperiente.
- O que eu quero lhe dizer, mãe guerreira, é que adquirir conhecimento é uma tarefa árdua e constante, e depende em sua grande maioria da pessoa a qual o capta. As notas baixas de seu filho é fruto do esforço dele a cada dia. Eu não posso fazer a prova por ele, pois é a sabedoria dele que deve ser testada. Seria muito fácil se chegasse à sala de aula e introduzisse meus saberes na cabeça de todos meus alunos, mas isto é impossível. A evolução acadêmica de seu filho deve ser conseqüência de sua atenção, esforço e dedicação, se ele não cumprir estes requisitos não espere que as instituições escolares o façam por ele. – Ditas estas palavras, reinou na sala um silêncio sepulcral, interrompido apenas pelo barulho do ar acondicionado.
- Está dizendo que a culpa de meu menino não estar aprendendo é dele e não dos professores? – Perguntou Gorete, mais calma ainda.
- É o que eu quero lhe dizer, os professores se encarregam ao máximo para lecionar, e depende do aluno captar ou não, questionar, tirar suas dúvidas e crescer como pessoa e estudante. Eu estaria lhe enganando se seu filho tirasse um dois na prova de matemática e eu lhe conferisse um sete, pois ele não está apto para continuar adquirindo conhecimentos cuja base jaz nessas provas anteriores.
- Professor, o senhor me convenceu, não posso cobrar de vocês, devo antes olhar para meu próprio filho.
- Guarde isto, não só para seu filho, mas para qualquer pessoa que queira escutar. A sabedoria é uma jóia valiosa, mas a diferença das outras, ela não ocupa espaço e, portanto, não pode ser furtada. Aí jaz toda a sua grandeza, conhecimento pode ser obtido todos os dias em todos os momentos, por isso eu dedico minha vida a enriquecer e obter uma visão mais ampla do gigantesco mundo que nos rodeia. Sinto prazer em poder compartilhar esses saberes com meus alunos, é uma pena que nem todos sintam o mesmo gosto.
A mãe do garoto então se levantou com um sorriso discreto no rosto e saiu da sala se despedindo educadamente. Asdrúbal então sentiu um fervor dentro de si, sua auto-estima se elevou ao ponto dele sorrir sozinho, compartilhando essa felicidade consigo mesmo.

“Esse texto é dedicado a todas as mães que trabalham o dia inteiro, batalham para satisfazer aos seus filhos e mesmo assim, os auxiliam na árdua tarefa de enriquecer suas mentes. Parabéns!”

Kalefka, 2º capítulo

Em contraste com os arredores, o clima em terra firme já era mais agradável e solene. O sol costumava se apresentar na maioria dos dias, a temperatura era suportável e a amplitude térmica era pequena, típica de um país tropical. Não havia registros na história da ilha de nenhuma catástrofe natural relevante. Contudo, os pescadores só se atreviam a pescar nos caudalosos rios, nunca no mar.
Os bosques eram outra característica peculiar, que diferenciava Kalefka dos outros lugares do mundo, pois não era a cidade ou a população da ilha que os aventureiros europeus desejavam explorar. Havia entre eles uma lenda que contava sobre a “ilha do ouro sem fim”. Era algo que despertava a ambição dos mais modestos tripulantes, que viam nessa lenda uma forma de poder ascender na vida. Os colonizadores que extraiam ouro nas Índias e na América, se atormentavam com o fato de algum dia todo aquele metal precioso acabar, e cedo ou tarde a fortuna desabaria, e sofreriam as conseqüências. Ninguém que adentrou na névoa em busca da ilha saiu com vida, pelo menos não oficialmente. Conta-se entre os náufragos que lá existem abacateiros anormais. Não porque tenham algum sabor fora do comum, além disso, uma pessoa que apenas comesse o abacate não o diferenciaria de outro qualquer. Mas o segredo está na semente. Da mesma forma que o planeta Terra é uma esfera e tem um núcleo pequeno e denso, a semente do abacate compartilha as mesmas características, diferenciando-se pela pequena pepita de ouro no centro. E essas misteriosas árvores crescem naturalmente nos bosques. Não é em vão que tantos metalíferos arriscam suas vidas nessa viagem sem rumo.
Os habitantes de Kalefka não encontraram nenhuma utilidade àquele metal brilhante. Apenas o rei e a nobreza o usavam em seus luxuosos castelos e robustos móveis. Mas com a falta de um comércio externo que pudesse valorizar o ouro, seu uso permaneceu sempre estético, sem maiores vantagens. Por isso, os membros mais ricos da cidade o eram não por possuir o metal mais buscado, mas sim por exercer um poder autoritário e inflexível para com o povo, que há muito tempo deixara de ser nômade.
Portanto, existia uma civilização bem organizada na ilha. Contudo, assemelha-se ao sistema feudal europeu, apenas sem trocas comerciais com outros feudos. Pode-se dizer até que reinava o absolutismo, pois o rei era “o escolhido do Deus”. Assim, o monarca ditava as regras que vinham, segundo ele, direto do céu. Abaixo da figura primordial do rei, estava a nobreza, que constituía sua família e seus amigos. Logo abaixo, estava o clero, que se encarregava de celebrar as comemorações religiosas e alienar o povo, vangloriando a figura do poder absoluto como representante do Deus supremo. Como sustentáculo dessa sociedade, está a plebe, que representa aproximadamente dois terços da população. Eles financiavam as luxuosas construções da nobreza e as vastas igrejas. Suavam todos os dias para que a elite se deliciasse com banquetes variados e saciassem sua gula. Mas eles não se importavam, pois a igreja, difundindo temor, dor e desesperança aos infiéis, se encarregava de orientar a mentalidade do ignorante povão. No local existia um comércio fluente, uma agricultura de bom rendimento, e o gado era rico e saudável. Porém, aos produtores lhes restavam apenas dois quintos de suas produções. Eles se sufocavam trabalhando, suando à luz do sol, enquanto os ociosos da nobreza, o rei e o clero se permitiam dormir doze horas por dia.
Definitivamente, esses aldeões não precisavam dessas sanguessugas. Sorte que eles nunca pegaram em armas. Mas a cidade tinha ferreiros, carpinteiros e fogueiros, então, toda a estrutura para fabricá-las, sorte que o povo ainda era pacífico e alienado. Diante da situação, o povo poderia algum dia refletir sobre o porquê de sua existência ser assim, e se perguntar por que os revoltosos desapareciam sem explicações. Ao parecer, o rei controlava a manada da melhor forma possível, pois ele dominava sem que o povo percebesse que estava sendo dominado. Contudo, essa estrutura poderia mudar quando algum indivíduo carismático e inteligente tirasse as vendas dos olhos da multidão.

sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

Serviço de enlatamento público

Outro dia de férias está passando, e eu sem nada para fazer e com fome, me dirijo à cozinha. Abro a despensa e o primeiro que vejo é uma lata de sardinhas; a utilizarei então. Abri o pão, despejei um pouco de azeite no mesmo e depois abri a lata de sardinhas... E que surpresa! Apesar de a latinha ser tão pequena, o conteúdo de alimento é excepcionalmente gigante! Ao vê-las tão comprimidas, espremidas, com a ausência de qualquer fonte de ventilação e com um cheiro desagradável tive pena daqueles peixes. Ah, que raios, esses animais estão mortos! Contudo, não queria eu ter de passar pelo desconforto das sardinhas.
Mais tarde no mesmo dia sai e fui à parada de ônibus. Eram mais ou menos as 18:00, por algum motivo que desejo não recordar, estava apressado. Passavam vários ônibus, um atrás do outro, mas aquele no qual eu subiria insistia em demorar. Quanta mais pressa temos, mais longa é a espera. Ao cabo de trinta minutos agonizantes, apareceu enfim o esperado ônibus, subo, sem antes amaldiçoá-lo e praguejá-lo até faltar-me saliva.
Aterrorizo-me ao constatar no número de pessoas em um recinto daquele reduzido tamanho, passei então por duas escadas, pois a compressão na qual as pessoas se encontravam me impedia avançar. Estava feliz por não ter que me espatifar daquela maneira. Enganei-me. Na parada seguinte subiu mais gente, e tive que filiar-me à regra daquele veículo barulhento. Apoiado com apenas um braço, sem ter o que fazer, lembrei-me do sufoco das sardinhas, “mas desta vez acontece com seres humanos vivos” pensei. Apertado, impaciente e sentindo um pudor desconfortante, essa era a forma com que tinha que me deslocar na cidade, e ainda ter a sorte de poder colocar um braço num dos ferros do ônibus.
E a STTU ainda tenta estimular os cidadãos a usarem o transporte público. Mas qual é o prazer em andar numa lata de sardinhas humanas como essa? Ainda mais com os preços em contínua ascensão. Há menos de dois anos valia R$1,75 e em questão de um ano e meio aumentou para R$ 2,00 em dois aumentos consecutivos. Posso reconhecer que uma das melhoras foi a renovação dos veículos, mas a frota continua com o mesmo número de ônibus. Então, a inquietante espera dos natalenses em nada mudou. A diferença de Recife, onde as passagens são mais baratas e a freqüência é muito maior. Em Fortaleza idem. Calamidade, esse é o nome que recebe o transporte público de Natal.
De todo o investimento que receberá Natal para sediar a copa em 2014, nada será investido na melhoria do transporte coletivo. “O que há agora é suficiente para atender a demanda” Essas foram as palavras do secretário de mobilidade urbana, Kelps Lima, em entrevista concedida ao jornal Novo. Segundo ele, os recursos serão utilizados para melhorar as rodovias atuais e realizar outros desdobramentos. Com todo respeito, mas como a frota total de hoje vai suportar a imensa quantidade de turistas e locais, se agora mal dá conta dos locais? Natal vai ser a única cidade do nordeste que não investirá em seu transporte coletivo.
De fato, as empresas de ônibus pretendem implantar uma inovadora e inédita maneira de se enlatar sardinhas. Por isso, a criação desse programa visa obter uma forma mais eficiente e de baixo custo, havendo maior rendimento e lucro.

sábado, 9 de janeiro de 2010

Kalefka (1º capítulo)

No ponto mais ocidental do globo terrestre existia uma ilha de restritas dimensões. O acesso a esse lugar tornava-se difícil e pouco freqüente. O mar furioso açoitava as rochas do litoral da ilha com bravura. Além do litoral, as constantes correntes marinhas aliadas à desconcertante neblina faziam com que os navegantes mais experientes morressem na tentativa de encontrar tal lugar. A neblina era um fluido espesso, não permitia a visão a mais de três metros, rico em vapor d’água e pobre em oxigênio livre. Por isso, respirar nesse mar era uma tarefa que poucos resistiam.
Quando os grandes comerciantes europeus desenvolveram tecnologias úteis como mapas e bússolas, decidiram voltar a procurar aquela lenda viva. De pouco lhes serviu. Para dificultar o encontro da ilha, os arredores da mesma tinham um mecanismo que impedia a pesca e o funcionamento das bússolas. Pois o lugar era rico em animais chamados peixes-gato, que comumente são venenosos. Além disso, eles emitem descargas elétricas alternadas, que criam um campo magnético que acaba por desorientar a bússola dos confiantes marinheiros. Estes aventureiros podiam passar vários dias à deriva, dando voltas em círculos, sentindo o impotente desespero de não ver nada além da neblina, cinza e úmida.
Poucos eram os corajosos que investiam numa busca tão duvidosa, considerada pelos navegantes como outra lenda viva, assim como o monstro do lago Ness. Muitos dos aventurados trás dias de procura, não lhes restava outro remédio que não fosse beber água salgada do mar. Depois de poucos dias tomando uma das águas mais salgadas, o excesso de sal no sangue o tornava grosso, e os fracos humanos se sentiam cansados, débeis, começavam a delirar dizendo palavras inteligíveis, tinham convulsões, e pioravam gradativamente, sofrendo uma morte angustiante e lenta. Os mais lúcidos enlouqueciam e suicidavam-se antes de chegar a tal situação.
A fim de contas, a ilha Kalefka não precisava de muros imponentes, nem de guardas robustos, nem de material bélico para se proteger da exploração de outros países. O clima dos arredores já lhe conferia a proteção necessária. Porém, isso funcionava com uma espada de dois gumes, pois era tão difícil a entrada como a saída. E tornava o lugar isolado, sem contato com outros povos, e os jovens curiosos freqüentemente se perguntavam se existiam outras sociedades além daquele mar bravio. O último relato da visita de algum marinheiro aconteceu há oitenta anos. E pouca informação se tem sobre a pequena tripulação.

quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

Palavras de um vestibulando satisfeito

“Após a tempestade sopram ventos favoráveis”

A famosa frase de navegantes por fim pode ser aplicada à vida de um estudante. Depois da fraude do Enem a qual frustrou milhões de estudantes no Brasil (e eu não consegui evitar criticá-la), espero que muitos alunos potiguares perseverantes possam compartilhar a mesma alegria que sinto. Ontem foi publicada a lista dos seis mil e tantos aprovados na UFRN, e senti a alegria percorrer meu corpo quando vários amigos atenciosos me ligaram para avisar sobre minha aprovação em segundo lugar no curso de nutrição.

Deixei de lado a vida de estudante parcialmente dedicado para agarrar com unhas e dentes a vida de um estudante dedicado. Abri mão nos últimos dez meses de grande parte do tempo que gastava com cinemas, praias, horas infrutíferas de internet, baladas e outras diversões para cravar com os cotovelos a mesa de madeira do meu quarto. Desde o começo do ano estabeleci um roteiro de estudo, priorizando aquelas matérias que pesariam mais na minha área. Disciplina e Determinação; essas são as palavras que resumem a suada e acredito que merecida aprovação. Espero que esse parágrafo não seja interpretado como arrogância minha, mas sim uma possível ajuda para futuros vestibulandos.

Apesar dos grandes problemas sociais do Brasil, acredito no seu potencial enquanto aos investimentos no ensino superior. E espero que o F de Federal possa mudar a vida dos brasileiros estudiosos. E assim, esta vitória desejo compartilhá-la com várias pessoas que me apoiaram e acreditaram em mim a través deste caminho sinuoso. Em primeiro lugar, desejo agradecer a minha mãe Edilene, pois ela foi quem me sustentou em casa com abrigo e comida e realizou ao longo do ano afazeres domésticos reservados a mim, apenas para que eu tivesse mais tempo para estudar. Mesmo com sua comemoração mais racional que emocional, sei que ela compartilha esta vitória comigo. Desejo também dedicar este depoimento a toda minha família; Agradeço a Walmir e Ana pelo apoio, confiança e por estar sempre acompanhando minha rotina de estudo. A minha avó, Beto, Graça, Regina, Diego e Luiz e família pela confiança que depositaram em mim. Caso estejam esperando, óbvio que não poderia esquecer dos meus companheiros de estudo. Existem muitos deles, mas cabe aqui destacar dois que foram essenciais para minha formação, curiosidade científica e insistência. Eles não poderiam ser outros: Fábio e Égon. Com estes dois excepcionais estudantes tive o honor de aprender de mais, resolvendo provas e questões provenientes dos mais renomados processos seletivos do Brasil. Com o primeiro deles tive a oportunidade de melhorar o raciocínio lógico e entender melhor os fenômenos físicos e químicos. E com o outro pude conhecer melhor as ciências humanas e devo dizer que com ele aprendi a escrever de acordo com as algemas que uma redação de vestibular impõe. Também estou grato a aqueles que acreditaram em mim e assistiram algumas das aulas de revisão antes das provas. Espero tê-los ajudado de alguma forma, mas saibam também que minha gratidão parte do fato de que eu fui a pessoa que mais se fortaleceu intelectualmente ao estudar para ensinar. Quero proporcionar também meus mais sinceros agradecimentos aos professores que acreditaram em mim e esclareceram as inúmeras dúvidas que circundavam minha cabeça. Por último, desejo agradecer ao pessoal que passou o réveillon comigo por comemorar minha aprovação e estragar meu cabelo. Com todos vocês desejo compartilhar esta vitória.

Depois de um sentimental agradecimento, no qual espero não ter esquecido ninguém que me apoiasse incondicionalmente, basta apenas dizer o que me resta fazer agora. Um tempo de férias e comemorações, matrícula, trotes e mais trotes, pedir dinheiro nos sinais como todo calouro, e principalmente, uma vida de universitário. Esta foi a primeira grande vitória da minha vida. Mas a busca por vitórias não termina por aqui, esta é a primeira das tantas que pretendo conquistar, poder crescer como profissional, esse é meu objetivo após entrar na faculdade, pois não sou uma pessoa que pretenda morrer no anonimato. Ah, por certo! Sei que quem leu isto já deve estar farto de agradecimentos, mas cabe aqui um último e especial: Ele vai para você, leitor, que teve a paciência de compartilhar da minha inspiração e felicidade expressada a través de palavras. Boa sorte, sucesso e um ótimo 2010 para você!

Mais um estudante frustrado

Primeiro, nos fazem engolir uma prova que se fará a nível nacional, de repente, sem avisos prévios, mudando completamente o estilo de prova comum. Mas tudo bem, as universidades têm livre arbítrio para aderir ou não ao novo modelo de vestibular unificado, proposto neste ano de 2009. Como é de se esperar, esta incrível máquina movida a dinheiro chamada homem preferiu aderir ao enem. Recebendo mais dinheiro do que arrecadariam com as provas normais, e sem realizar nenhum esforço, a maioria dos reitores das universidades federais decidiram adotar essa prova como exame de seleção em suas instituições. (Se não me falham os cálculos, apenas 5 das 55 universidades federais não aceitaram o enem como exame de seleção). Com esta brincadeira, nós estudantes, acabamos sendo as cobaias do imenso laboratório, no qual nos observam e avaliam nosso comportamento como alunos. Mas não importa, penso que uma mudança em principio nos traz medo e desconfiança, porém, em um futuro próximo pode ser útil à integração nacional, ou seja, poder seguir os padrões de seleção universitária dos países desenvolvidos, como França, Espanha, Estados Unidos etc. O problema maior é que os estudantes brasileiros não têm acesso à mesma qualidade de educação, o que gera grandes desigualdades no processo seletivo. No entanto, não é isso o que pretendo discutir, mas sim outro assunto. Pensava eu, na minha ingênua mente, que a educação num país era algo sagrado, incorrompível, fruto do futuro de um povo e passaporte para a qualidade de vida humana. Mais uma vez me equivoquei. Nem um bem tão valioso é respeitado pelos governantes nessa nação, já aconteceram desvios nos setores de construção civil, no assistencialismo entre outros. Esse teste que nos fazem engolir de forma brusca, foi fraudado. Três dias antes da realização do exame foi dado o aviso de fraude. E os futuros universitários observam frustrados, desorientados e desanimados como seus roteiros de estudo, a preparação e a ansiedade que acarretam a prova desabam como uma frágil cidade em meio à guerra. Já não nos tratam como cobaias, mas sim como palhaços que fazem malabarismos e palhaçadas para a diversão dos governantes. Adiada para o começo de dezembro, pretende-se que não aconteçam mais desvios. Com todo o prejuízo que isso acarreta: Pessoas que já haviam viajado para realizar a prova perderam a viagem, com esse adiamento, as faculdades seguramente terão que começar seus roteiros mais tarde, podendo afetar a conclusão das grades. Além disso, os estudantes que tivessem uma viagem de férias planejada, tentando comemorar talvez as últimas, foram inibidos. Fora o dano moral que isso leva em si, até a nível internacional: o canal de televisão espanhola TVE abordou em seu noticiário essa vergonhosa fraude. Com tudo isso, a expectativa de um estudante quando ouve a palavra “enem” já não é a mesma. Antes havia a emoção de poder lidar com um novo desafio, enfrentar a famosa interdisciplinaridade que ela carrega em si. Agora, o único que resta é a frustração e o desânimo causado por mais uma evidência de corrupção.

Memórias de um imigrante (09/04/2008)

Atualmente existem muitos imigrantes brasileiros, todos nós conhecemos algum ou outro parente ou amigo que mora ou morou no estrangeiro. Recentemente, os estrangeiros não estão sendo recebidos da mesma maneira que cinco ou dez anos atrás. O tema muito difundido ultimamente pela mídia é a deportação de brasileiros desde a Espanha, especificamente desde Madrid. Mas este não é um caso isolado, isto vem ocorrendo há dois ou três anos. A legislação está sendo mais rígida com os imigrantes ilegais, eles têm cada vez mais dificuldades para garantir sua instância.
O que aconteceu na Espanha e em Portugal alguns anos atrás foi o seguinte: sua produtividade aumentou de forma inesperada e acelerada. E assim, abriram suas fronteiras aos países latinos e africanos, para garantir uma mão de obra barata. O que vem acontecendo é algo previsível em um país que abriu suas fronteiras para ‘as oportunidades’, as taxas de desemprego aumentam. Os nativos não se sentem contentes eles sentem como se estes imigrantes ‘manchassem’ suas tradições e sua cultura. Claro que esta ideologia é praticada pela parte mais conservadora da população, embora a maioria sinta certo receio. Não é comparável a abertura das fronteiras coma a ação de encher um balão. Quando se enche um balão e percebemos que nele há suficiente ar, simplesmente o fechamos com um nó. Depois de abrir fronteiras não podemos ‘fazer um nó’ para deter a passagem de imigrantes. A relação entre os países com contato migratório cresce continuamente, por isso a detenção de imigrantes traz danos morais e/ou econômicos. Já que uma pessoa pode deixar uma vida para trás para morar no exterior, e tudo terminar com a famosa detenção no aeroporto.
A continuação há uma anedota de como são tratados os imigrantes na Espanha, dedicado a todos aqueles que pensam que Europa é o continente das oportunidades.
Era uma noite de terça-feira, naquele dia eu tinha ido dormir cedo, porque sabia que teria que acordar de madrugada e um longo dia me esperava.
- Thiago, acorda, vá se preparando. – Disse minha mãe acordando-me após ter acendido a luz do meu quarto. Fiquei num estado semi-consciente, típico de quando se acorda no meio da noite. Olhei para o meu relógio de pulso, e vi que eram três horas da madrugada. Levantei-me e me vesti. Quando cheguei à conzinha, ouvi a reclamação que já esperava:
- Meu filho, com essa roupa você vai passar frio. Coloque outra jaqueta e leve as luvas e as botas, choveu muito durante a noite. – disse impaciente minha mãe.
Sem dizer uma só palavra, voltei ao meu quarto e fiz o que fui mandado. Ao ir novamente à cozinha um chocolate quente, uma banana e um pedaço de pão com um ovo frito me esperavam. Meu padrasto também tomava o café da manhã, enquanto minha mãe organizava cuidadosamente uma pasta com documentos. Partimos rumo a Alicante, a cidade onde estava a secretaria de imigrantes. No caminho, dificilmente cochilava, já que Klaus, meu padrasto ligou o rádio para não dormir ao volante. A estrada estava tão vazia como uma praia em uma madrugada de inverno.
Após uma hora de viagem chegamos a Alicante, uma cidade movimentada e bem iluminada. O nosso objetivo era encontrar a secretaria de imigrantes. A impaciência do meu padrasto juntamente com a dificuldade minha mãe em interpretar mapas, tornou a tarefa ainda mais difícil.
Logo que entramos em uma rua menos iluminada que o habitual, uma cena me chamou a atenção e me tirou o sono por alguns instantes: mulheres nuas e seminuas, com decotes abertos e saias curtas. Elas corriam desesperadamente em direção ao nosso carro, gritando palavras incompreensíveis, que mais pareciam uma difusão de números diferentes.
- Olhem as galinhas, hahahaha. – Disse Klaus, zombando da situação, para quebrar a tensão que se originou com o olhar descarado. Em seguida acelerou o carro e saímos daquela rua escura.
A cena foi curta, mas despertou muito o meu interesse. Fiquei pensando como aquelas mulheres agüentavam aquele frio estando seminuas, e enquanto eu, dentro de um carro fechado e estando agasalhado, me debatia de tanto frio? E com que ânsia corriam como leões atrás de uma apreciada presa, competindo por ela. Algo muito importante chamou minha atenção: nenhuma parecia espanhola. Pude reconhecer mulheres latinas, africanas e do leste europeu. Com isso conclui e depois foi confirmada essa minha conclusão. A imensa maioria de mulheres que se prostituem na Espanha trabalha em condições péssimas, e são imigrantes. Muitas vezes são exploradas por uma máfia que cresce cada vez mais, nenhuma das que tive oportunidade de ouvir começou a exercer a prostituição voluntariamente.
(...) Continuamos rodando pela grande cidade uns vinte minutos mais, até que encontramos uma placa que sinalizava a direção à bendita secretaria de imigrantes. Foi um grande alivio encontrar o lugar, já que minha mãe chegou ao ponto de ameaçar em descer do carro e pegar um táxi, coisa que nada me agradava.
Descemos do carro, minha mãe e eu, e nos despedimos do meu padrasto. Ele nos desejou sorte e disse que não poderia vir buscar, já que tinha uma reunião naquele horário com os dirigentes da Volkswagen em Dénia.
- Que alívio!! - Falei com um longo e aliviado suspiro.
- Por que? – Perguntou minha mãe com uma certa indiferença.
- Agora acabaram as discussões sobre como chegar. Vocês dois poderiam ser mais pacientes e tolerantes um com o outro. – Desabafei, colocando para fora um sentimento que estava reprimindo desde o começo das discussões.
- Não se faça de vitima, você não contribuiu em nada para chegar aqui. Além disso, agora não é gora de discutir sobre isso. Vamos à fila. – Falou minha mãe sem perder a paciência.
Quatro e meia da manhã naquela fria cidade. Aproximadamente trinta pessoas na fila, nenhuma delas estampava um sorriso em suas faces. Todas estavam confusas, não tinham certeza de que seus objetivos seriam alcançados se seu tempo seria aproveitado. Tudo isso aliado a um lugar iluminado por faróis de carros, dava ao lugar um aspecto pouco acolhedor e desagradável.
A secretaria de imigração abriria suas portas às oito e meia da manhã. Não tínhamos chegado àquele lugar de madrugada por vontade própria. Os dirigentes da secretaria distribuíam uma certa quantidade de senhas. As pessoas que chegassem ao lugar após as senhas se esgotarem, teriam que voltar pelo mesmo lugar desde onde vieram. Se estas pessoas se reinvidicassem, pedindo um último atendimento, tentando convencer que seu assunto é rápido, o funcionário responderia de forma muito impessoal e indiferente, com a típica frase dirigida à pessoa que não tem êxito: ‘má sorte’.
Continuamos em pé, conversando algum assunto banal de vez em quando, até que descobrimos que o homem que estava na frente era brasileiro. Contou-nos sua história: Seu nome era Anderson, tinha 32 anos, trabalhava como garçom, era gaúcho e tinha vindo com o mesmo objetivo que eu, o famoso visto. Disse-nos que era formado em medicina, mas que seu currículo e seus estudos não foram considerados. O tempo passava, enquanto eu pensava na minha quente cama que poderia estar desfrutando. Pensava e deixava voar minha imaginação para que o tempo passasse mais rápido, já que parecia estancado.
Seis e meia da manhã eram quando o ambiente começou a clarear e progressivamente, o sol começava a emergir no horizonte. A fila já era enorme, não era possível observar o final dela, com isso, as confusões começavam, competindo por um lugar mais próximo à entrada da secretaria. Não era em vão que chegamos tão cedo, assim conseguimos estar longe do local das confusões, onde o homem se converte em um ser não civilizado.
Conforme o dia clareava, a temperatura aumentava, senti calor e tirei a grossa jaqueta. Oito e dez da manhã eram quando chegaram os funcionários, três mulheres, dois seguranças, e um homem alto, vestido socialmente. Ao passo dessas pessoas criava-se expectativa, da mesma maneira quando os jogadores de futebol entram no campo antes de um jogo importante. Nunca esqueceria a cara do homem alto, vestido socialmente, que parecia ser o líder daqueles simples funcionários. Expressava amargura, indiferença com os imigrantes, que não os olhava ao passar pelo seu lado, trato impessoal com seus subordinados. Com isso demonstrava que não gostava de seu trabalho, lhe parecia um peso que devia carregar, com isso difunde o pessimismo, e creia o mesmo sentimento com as pessoas que se relaciona. Os funcionários entraram pela porta pequena e a fecharam, deveriam estar preparando o lugar para receber os imigrantes. Cheirava-se nervosismo e expectativa, quando as pessoas começavam a falar entre si, a contar o porquê de sua vinda. Conseqüentemente meu coração começava a bater mais forte. Meia hora depois, foi quando os próprios seguranças começaram a abrir os portões daquela grande sala.
A fila começou a avançar, e pela primeira vez, comecei a olhar para as pessoas que a constituíam. Latinos, africanos e chineses. E aqui surge a pergunta: A Espanha é um país com mais imigrantes, onde encontramos alemães, norte-americanos, australianos, japoneses... Estas pessoas têm embaixadas de seus próprios países na Espanha, e são tratadas de maneira diferente, sem a complicação pela que ‘o resto’ tem que passar; a exceção dos europeus, que fazem parte da união européia e têm livre arbítrio para viajar por este continente. E principalmente, estes últimos referidos, europeus, norte-americanos, australianos e japoneses, são chamados de estrangeiros.
Ocorreu um incidente que chamou a atenção de todos, um homem de aparência marroquina ou algeriana gritava desesperadamente:
- Faz mais de um ano que ando atrás do documento sem resposta!! Eu quero trabalhar honestamente, mas vocês... - Não chegamos a escutar o que mais gritava, pois os dois seguranças, ambos com os bíceps do tamanho da minha cabeça, levaram para fora o homem.
Minha vez estava chegando e eu me sentia cada vez mais nervoso, vendo como o homem alto dispensava pessoas, beneficiadas ou não, como se fosse gado. Então chegou o momento pelo qual esperamos durante horas:
- Olhe senhor, meu filho estuda aqui há dois anos e lhe corresponde por lei o documento nacional, trouxe sua certidão de nascimento, documento de identificação, passaporte, comprovante da esc...
- Mas o passaporte é espanhol? – Me surpreendeu a forma brusca com que ele interrompeu minha mãe, que se sentiu indignada com o berro, mas manteve a calma e respondeu:
- Não, mas fui informada que com os doc...
- Vamos próximo!! – Exclamou o homem, que assinalava com a mão que saíssemos. Fomos falar com uma das funcionárias, que tinha a função de ‘psicóloga’ no lugar, pessoas com menos autoritarismo que aquele homem.
- Senhora, seu filho vai ter que receber o passaporte espanhol, para depois poder conseguir seu documento nacional, esta é a regra para os menores de idade. – Disse a moça, que parecia poder tratar-se com ela de uma forma mais humana.
Minha mãe que parecia alucinada com a sucessão de fatos que acabavam de acontecer. E ao mesmo tempo indignada por ter perdido tantas horas de espera com uma conversa incoerente e pobre, que não pôde nem sequer expressar-se como pessoa. Com essa cara permaneceu uns poucos segundos, até que quando pareceu ter recuperado a consciência perguntou:
- Então, meu filho é do Brasil, tenho que conseguir o passaporte no consulado de Barcelona?
- Sim, quando tenha o passaporte, volte aqui. E desculpe pelo trato, ele tem que atender muitas pessoas. – Disse a moça, ao ver a cara de desesperança da minha mãe.
Nesse momento fui entender aquele sistema: O homem alto terminava seu trabalho quando as senhas acabassem, e assim tratava as pessoas com a maior rapidez possível. Um sentimento de raiva, decepção e grande impotência se formou no meu interior, diante daquela situação indignante e de certa forma desumana. Olhei para minha mãe, percebi que o seu sentimento de ingratidão era ainda mais forte que o meu, mas o disfarçou o melhor possível.
Saímos da secretaria de imigração, descobrimos onde era a rodoviária a base de perguntas. Quando chegamos, fomos diretamente a um bar. Eu pedi um grande sanduíche, que meu estômago já começava a rugir como um leão, minha mãe pediu uma torrada com tomate e azeite.
- Ah! Eu vou visitar uma amiga agora, quer vir? – Perguntou minha mãe.
- Acho que não irei, estou cansado. – Disse eu, olhando para minha mãe com cara de aborrecimento.
- OK, então toma quinze euros, nove para a passagem e seis se precisar de alguma coisa. Vá com cuidado, tchau filho. – Com isso dito, ela foi pagar a conta e saiu do bar.
Saí do bar e comprei a passagem Alicante – Dénia. Era uma rodoviária limpa e bem cuidada, e era um lugar muito mais acolhedor que o inferno onde passei a madrugada e parte da manhã. Meu ônibus saia às 10:45, e eram 10:25, decidi sentar-me nos bancos que haviam na sala de ao lado. Estava soando o rádio, o canal local de notícias:
- Hoje, um indigente de origem árabe agrediu a autoridade pública, manifestando-se, quase agride fisicamente o secretário geral da imigração de Alicante e dois funcionários. – Noticiou o locutor do rádio.
E eu fiquei pensando: Indigente? Agressão? Pelo que vi e ouvi, nenhuma dessas condições se cumpria. O árabe queria trabalhar legalmente, e não teve nenhuma intenção de agredir fisicamente, simplesmente gritou e foi reprimido.
- Este árabe encontra-se em detenção provisória, até que algum familiar ou parente o reconheça, informamos: seu nome é Hasset...
Não queria continuar escutando, percebi que a mídia faz o que melhor lhe convêm: interpreta da maneira e com os termos que quer que sua população entenda os fatos.
Às 10:45, peguei o ônibus, olhei para o horizonte, e continuei vivendo aquela minha vida de imigrante ilegal.

Escravos do século XXI

Neste último mês de abril estamos todos focados em uma notícia só: “Isabella Nardoni” a menina morta em São Paulo aos finais de março. Não se fala de outra coisa em diferentes lugares do país, escolas, locais de trabalho, ônibus etc. Todos atentos aos meios de comunicação para saber quem foi o assassino da menina. Muitas pessoas conversando, contando as últimas declarações do dia anterior, como se fosse a notícia mais importante.
Pois bem, as notícias parecem medir-se pela sua difusão nos meios de comunicação e não pela sua verdadeira gravidade. Agora mesmo poderíamos estar vivendo em uma crise, pensando que estamos vivendo em um paraíso, dependendo simplesmente do que ouvimos naquele aparelho que não falta na casa de uma família brasileira: a televisão. E vice-versa também, viver um paraíso baixo uma avalanche de más notícias.
Posso apostar todas minhas moedas que a metade dos brasileiros ou mais não conhece fatos tão importantes como o que está acontecendo realmente no conflito Tibete-China. A maioria não saberá dizer o valor do euro em relação ao real, e porque mudou tanto nesses últimos anos. E algo que nunca foi visto na televisão: “As crianças subsaarianas nos países em guerra civil”. Quem se lembra delas? Alguém sequer se perguntou como eles vivem? Estas crianças vivem em situações precárias, fugindo da guerra, são obrigadas a lutar sem escolha: Lutar pela sobrevivência ou morrer. Todas estas notícias nos são ocultas. Fecham nossos olhos ao mundo, não sabemos o que está realmente acontecendo, ao igual que antigamente no coliseu, as pessoas simplesmente não queriam saber o que havia no exterior, obrigados a viver num sistema baseado na política do “pão e circo”.
Agora você deve estar se perguntando: Este é um caso nacional, por isso se comenta tanto. Já imaginou a incrível “crise” pela que estaríamos passando se soubéssemos todos os dias os casos das crianças que morrem? Muitas mais crianças são assassinadas a cada dia, é claro que não se sabe de todos. Deixo uma pergunta para que reflitam: Alguma vez se viu na televisão o caso de um assassinato de uma criança em uma família de uma renda baixa?
O verdadeiro objetivo das conversas das pessoas não é a morte em si, mas sim saber como acaba o caso. Ao igual que um romance, o brasileiro adora saber o final. Analisando o caso, qualquer curioso não parente da menina que conheça a si mesmo, chegará a esta conclusão.
Este caso já foi resolvido há muito tempo, com certeza. Mas realmente é conveniente para a mídia que este caso acabe tão cedo? Não sei se foi percebido pelos telespectadores que esta notícia é um monopólio de atenção, e não se economiza na hora de difundi-la. Aí está a verdadeira essência: É uma notícia que chama muito a atenção, com muita audiência. Isto conseqüentemente traz grande difusão dos produtos propagados pela emissora.
Sempre vemos a televisão, e sua gratuidade só é possível pelo investimento dos produtos vendidos, por tanto, a informação de que somos escravos, não é falsa, e isto é inegável, o fato de chamar um produto pelo nome da marca é algo cotidiano e sempre presente: Leite condensado não é leite condensado, é “leite moça”, o aparelho de barbear já não é aparelho de barbear, é “Gilette”, o cacau em pó não é mais cacau em pó, é “Nescau”, a esponja de aço passou a ser “bom bril”. Somos escravos dessas corporações. Consumistas por impulso, compramos o que todos vêm e compram, não nos perguntamos nem avaliamos se o que estamos comprando é realmente de melhor qualidade.
Por Isto e outros motivos, devemos ter ampla visão do mundo, não conformarmo-nos com o que vemos, procurar saber o que realmente acontece, conhecer os fatos sem sombras. A televisão tem a capacidade de apresentar uma visão única dos fatos, eles nos são oferecidos tal e como lhe convêm aos meios de comunicação. Depende-se da visão, do termo usado para criar conceitos, idéias ou opiniões. Um exemplo disso são os termos sugeridos: ocupar e invadir não têm o mesmo significado no caso dos sem-terra, depende do ponto de vista. O pior domínio é aquele que não percebemos que estamos sendo dominados, no qual pensamos que somos livres e felizes. Com isto, espero que seja consciente para não converter-se em outro mero escravo da mídia.